À beirinha do último pensamento do dia, a menina repetia de si para si: " Amanhã, por esta hora, já estou ao pé da minha avó e do meu irmão. A ver o luar a entrar pela janela e a ouvir as corujas ao longe!". Sentia-se cansada mas feliz: tinha conseguido fazer sozinha a compota de dióspiros de que a avó gostava tanto. A avó e ela própria, pois todos os outros torciam sempre o nariz quando vinha à baila a bendita compota de dióspiros! Para o irmão levava um pequenino automóvel vermelho que já sabia que era o seu sonho e ia servir para aumentar uma coleção interminável de miniaturas que já dava, sabe-se lá quantas vezes, a volta ao quarto! Lembrou-se dos tempos em que os dois viviam sempre com a avó, e das longas conversas que tinham. - Avó, conte-nos a história da sua vida.
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A avó ajeitava as saias largas e sentava-se num banquinho muito espevitada: - Desde o princípio? - Claro, desde o princípio. - Antigamente, há muitos muitos anos, quando ainda não havia pessoas neste mundo... - Ó avó, assim não!!! Isso é um princípio lá muito para trás! A avó repostava: - Mas querem que eu conte a história da minha vida, ou não?! As vidas não começam logo logo o dia em que nascemos. Há uns certos preparativos!
A menina já conhecia de cor e salteado "os preparativos" das histórias da sua avó. Quando lhe pedia para dizer o que era o almoço, ela começava a contar a vida incrível da trisavó da galinha que tinha posto os ovos que iriam comer no almoço daquele dia! E quando certo dia admirou o lindo vestido de seda natural que a sua avó trazia, tive de a ouvir descrever, os sonhos dos bichinhos da seda a dormitar dentro dos seus casulos misteriosos...antes de começarem a produzir os fios de seda que iriam dar origem ao tecido do vestido que a avó trazia naquele dia! E quando o irmão uma vez lhe perguntou se não era mesmo formidável o último carrinho da sua coleção, ela, a avó desatou a contar a aventura da invenção da roda, com muitas explicações históricas à mistura!
Sorrindo à saudade desses tempos, a menina adormeceu quase logo, a sonhar com uma borboleta transparente e leve que lhe prometia ensiná-la a voar no azul dos céus. Longe, na quietude do seu "monte" ribatejano, a avó ainda não tinha conseguido encontrar o sono daquela noite. Era bom saber que o neto mais novinho dormia tranquilo no quarto do lado. Suspirou: - Este Natal tem de ser assim. Os filhos no estrangeiro, a tratar da vida, e eu com "os miminhos da horta", os meus queridos netos. Ainda bem que fui capaz de acabar a compota de dióspiros para a minha neta! Quando ela amanhã chegar, vai ter uma surpresa formidável! E quase quase a enfiar-se por dentro do mágico túnel dos sonhos, a avó sorriu, mesmo à beirinha do último pensamento do dia: "Adorava que ela me pedisse para eu contar a história da minha vida..."
Maria Alberta Menéres. In, "Sigam a Borboleta!". Ilustração de Isabel Pissarra. Bertrand Editora
Fonte: Página Facebook " Mala d'estórias "
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