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  • Foto do escritordenizepaixaoborges

CARTA DE UM MENDIGO


Sentei-me na calçada habitual da rua mais que normal.

Pretendo resumir-vos o meu ofício. A minha profissão, esta de pedir, aqui prostrado todo o dia. Esta humilhação, há muito já a esqueci, tal como quando me esqueci de mim. Fui forçado a isso.

Não importa agora quem fui um dia, o que já tive ou o que poderia ter tido e ter sido, pois para mim tudo é vão, e banal e burocracria…

A minha realidade é que hoje é 3.ªfeira de manhã, de uma manhã de Inverno, e tenho frio. Estou assim, numa das mais movimentadas ruas de Lisboa a ver todo o tipo de gente que se cruza, e circula. Gente feia, gente anónima, uns educados, outros nem por isso, uns engravatados e outros a pedir esmola como eu.

Mas, existem aqueles, e eu sei, que pedem por pedir e não precisam, e as pessoas pensam que todos os que pedem são assim, mas a verdade é que se não me me ajudarem eu não subsisto. O dinheiro que me dão não é para os copos, não é para a droga, como toda a gente diz “à boca cheia” e com razão por causa de muitos, mas o dinheiro que me dão é para a minha sopinha, para a minha côdea de pão quando a fome aperta e eu não tenho ninguém com quem contar.

Só tenho 60 anos, mas estou sem trabalho há cinco!

Há muito que se foi o subsídio de desemprego após tantos anos a trabalhar naquela fábrica a vida inteira, a seguir veio o divórcio que me levou a indemnização com as prestações da casa, que evidentemente achei que deveriam ficar para a mulher e os meus dois filhos, ainda que já maiores de idade. Ainda estavam a estudar.

Eu lá me haveria de arranjar.

Daí até vir parar às pedras da calçada e dormir por aí em qualquer lado, foi um ápice.

Na verdade, nem sei bem como se deu mas recordo-me da primeira noite que dormi na rua, do medo que senti, mas principalmente do desamparo total e da humilhação, já para não falar do desconforto físico que relativamente ao da alma não é nada…

A minha antiga profissão era ser encarregado numa fábrica de laníficios, porém como tantas outras, a fábrica onde eu trabalhei durante anos, fechou, e por mais que eu tente , ninguém me dá trabalho com a idade que tenho. Chamam-me de velho!

“Velho demais para trabalhar, jovem demais para me reformar”. De modo que não tenho nada!

E, ninguém imagina a fome que sinto por vezes…é brutal!

E, o frio!

É qualquer coisa de desumano senti-lo desta forma!

Hoje sei dar valor aos “Sem Abrigo” que eu tanto ouvia falar na televisão em épocas de Natal, e ignorava. Aquilo passava-me ao lado, como hoje passa ao lado de todos vós a minha condição.

Hoje sou um deles. Rastejo por uma côdea de pão. Pão esse que eu deitava fora tantas vezes por estar demasiado rijo. Hoje tiro-o do lixo.

Quem diria?

Continuo quase inerte sentado nas pedras da calçada. Não uso artefactos para mendigar, não consigo…

Talvez por isso nunca consiga grande coisa, apenas o suficiente para ir à Santa Casa e comer umas sandes para enganar o estômago.

Nunca tive jeito sequer para pedir, porém hoje é a minha profissão, tenho que me habituar e aprender com os outros se me quero safar, mas será que quero?!

Ou quero continuar ainda que mendigo humilhado por tudo e todos a manter a minha rigorosa conduta de homem irrepreensível, de cidadão atento, de pai e trabalhador responsável como sempre fui até cair no fundo do poço?

Uma coisa eu sei, este não é o fim da minha linha.

Não é o término do meu Caminho. A minha Jornada é pesada, eu estou exausto, estou só em pleno deserto…são só as pedras do chão de uma cidade, a fome que encerro em mim, os olhares que me lançam inóspitos e os risos de escárnio para além do frio que me rasga o rosto…

Sei que vou adormecer junto a Ti e ao acordar não existirão mais pedras de calçada, mas somente Jardins e lírios, cravos e rosas por beijar…


Célia Moura, (um pouco de prosa)

Ilustração – Gabino garrote photography

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